Corresp #02

Pausa necessária

 

 

Glayson Arcanjo.

Goiânia, 24 de Maio

Caro Paulo,

Foi com grande entusiasmo que recebi sua correspondência. Após recebê-la esperei por um bom momento para ler a carta e assim a fiz. Li cada um dos fatos narrados por você e logo me vi transportado para o início deste ano, mais precisamente janeiro. Naquele mês, decidi encerrar o passeio de férias antecipadamente e retornar a minha casa em Goiânia para me concentrar na organização do material das exposições agendadas para o primeiro semestre 2020, e determinado em aproveitar o tempo que me restava antes da volta às aulas. Confesso que foi uma decisão arriscada ter aceitado abrir duas exposições com um intervalo de poucos dias entre elas, mas isso tornava meu ânimo (humor) um misto de empolgação, pela possibilidade de expor, e nervosismo, pelo curto prazo disponível para a elaboração. 

Recordo-me que, na intenção de minimamente contornar a tensão interna que teimava em se instaurar em mim, passei a me mover pelo interior da casa retirando dos armários e prateleiras inúmeras caixas, pastas e sacolas. Abri uma a uma e depositei tudo no chão pelos cômodos, para em seguida ir afixando nas paredes ou depositando sobre as mesas desenhos e outros trabalhos em papel, fotografias impressas, cadernos, objetos etc. Foi instigante olhar para os agrupamentos que surgiram, e as afinidades que se deram entre trabalhos realizados em períodos distintos. 

Ao reunir todo aquele material em minha casa, pude perceber que nem eu mesmo havia tido a oportunidade de ver tudo organizado em um só espaço. Foi então que tomei coragem e convidei alguns poucos amigos para visitas a casa, agora tornada galeria. Isso porque a casa onde moro tem o pé direito bem alto, todas as paredes são brancas e ainda são raros os móveis e coisas nas paredes, o que faz dela algo semelhante ao espaço vazio de uma galeria. Por isso minha casa se apresentava, naquele momento, como lugar ideal para simular uma mostra, me permitindo dar início à organização e seleção do que poderia ou não fazer parte das exposições que estavam por vir.  

E é aí que você entra na história, através do convite que fiz para uma visita, um café e uma conversa, e que você de pronto respondeu aceitando. A intenção, além do encontro em si e da possibilidade de conhecê-lo um pouco mais, era também apresentar aquela ordenação de obras desenvolvidas ao longo de 14 anos. Andamos pela casa e realizei contigo o que poderíamos chamar de visita espontânea pelos diversos cômodos, olhando e conversando sobre os trabalhos. Sem me dar conta, à medida que íamos tecendo fios de conversas e enveredamos por aquele conjunto de processos acomodados na casa, acabei por mostrar também um tanto de mim.  

Naquela tarde, além do café e quitandas, fiquei entusiasmado com as trocas que se efetivaram já no nosso primeiro encontro. Depois, tivemos um segundo, em 9 de março, no CCUFG (como você bem lembrou), e deixamos agendado um terceiro, para o dia 25 daquele mês – encontro que, tal como as exposições agendadas, não ocorreu. Caro colega, fomos pegos pela urgência dos acontecimentos, obrigados a parar completamente; não apenas eu, não só você, mas todos nós. Quem, naquela última semana de janeiro, ou mesmo, na primeira semana de março, poderia prever as “ruínas e demolições” dos mundos que conhecemos até então? 

Uma pausa aqui.

Volto à correspondência e a leio novamente do início, percorro as palavras em seus escritos, busco as expressões e recorto a seguinte pergunta: o que fazer? E completo: o que fazer daquele ponto em diante? Fico alguns instantes pensando sobre a rapidez com que a Pandemia chegou e se espalhou pelo mundo e no modo urgente e acelerado com que são exigidas resoluções, principalmente nas esferas econômicas e sanitárias, e como elas não chegarão tão rapidamente, pois, como nos aponta o sociólogo Bruno Latour, parece que estamos não em meio a uma crise, mas diante de uma mutação ecológica duradoura e irreversível.

Com o baque sentido pela força abrupta da parada e dos adiamentos, fui tomado por uma completa desorientação em relação ao espaço que me rodeava e um embaralhamento do tempo; dos dias e das horas. Tive que suspender tudo. Era chegado o momento de parar. Parar para não mais viver a vida que vivíamos, mas para desacelerar. Passar a não saber as respostas se configurou e confundiu com o próprio viver. E apesar de parecer contraditório, foi na pausa que segui adiante, talvez por sentir que há algo diferente a ser vivido, algo que não sabemos ainda e que precisamos reaprender ou recuperar, e que nos foi tomado pelas ideias e ideais de progresso e modernidade.

Tal como ocorreu com a exposição Entre ruínas e demolições, adiada para um tempo futuro que de fato não sabemos quando será, também nós passamos a ocupar esta esfera e estado de suspensão. É no interior dela que iremos nos reinventar, inventar outros modos de estar no mundo e de existir? Se sim, porém, não nos esqueçamos da própria interrupção, espécie de ruína dissipada pelo mundo e em nós. Com ela, agora seguimos.

Um abraço,

Glayson