Corresp #03

Embaralhamento do tempo

 

 

Paulo Duarte

Goiânia, 10 de Junho

Caro Glayson, 

Admito que as mais variadas vibrações positivas me invadiram ao percorrer as palavras de sua carta. Lida com atraso, a procura da calma ideal que os tempos modernos nos dificultam ter, me arrancou um sorriso ao lembrar-me dos projetos que ainda iniciávamos no começo deste ano. Toda história tem múltiplos pontos de vista, e para mim é maravilhoso (re)viver aquela experiência através das suas palavras, completando esse frágil quebra-cabeça que é a nossa memória. Certamente, aquela visita espontânea sob uma forte chuva de verão nos conduziu a uma série de conversas que apontou, talvez até rapidamente, a uma sintonia de ideias. 

Eu preciso confessar que ao terminar de ler a sua carta fiquei um bom tempo perdido nos meus próprios pensamentos. Na verdade, durante uma semana não parei de pensar em uma frase que me marcou: o «embaralhamento do tempo». Horas e dias, em absoluto estado de suspensão, se embaralharam perdendo uma natural cronologia do estado das coisas. Como você bem aponta, apesar de contraditório, nessa pausa de tempo indeterminado, nesse embaralhamento do tempo, podemos pensar outras formas de ocupar, estar, existir e pensar este mundo nosso. E veja que coisa, é Entre ruínas e demolições; para ser mais precisos, é entre as ruínas das demolições de um mundo que parece ter desabado que seguiremos caminhando.

Uma pausa.

Tenho passado todas as tardes sentado frente a uma árvore bonita, com flores amarelas, que tenho no jardim. Nesse tempo embaralhado, pude observar seu tronco rugoso que me evoca, às vezes, às Texturologie de Jean Dubuffet; observo o vento que corta as folhas e as fazem dançar; o sol que lentamente atravessa toda a folhagem e num certo momento do dia coloca-se no centro da copa desenhando um círculo de luz; e as flores amarelas, que nesse observar atento, pude perceber aquelas que nascem e aquelas que caem. Tocá-las, uma vez no chão, tem sido um prazer estético e sensitivo.

Uma pausa.

O «embaralhamento do tempo» me fez pensar muito em nossa exposição, numa questão essencial para a curadoria da mostra: o tempo. Lembro-me de uma conversa nossa sobre isso; aliás, mais que uma conversa, foi quase que um comentário. Decidimos, mais uma vez em sintonia de ideias, trabalhar sobre esses 14 anos de produção não de forma cronológica e biográfica, mas de outra forma, quiçá temática e buscando relações com o presente. Passamos, então, a pensar em embaralhar as obras e o tempo. Estas últimas semanas, pensando nesse embaralhar o tempo que para mim se revelou tão importante, recuperei alguns textos que tinha presente em minha memória e procurei relê-los. Passei d’A heterocronicidade da contemporaneidade (2013) do historiador da arte Keith Moxey ao clássico do também historiador da arte George Kubler, A configuração do tempo. Observações sobre a história das coisas (1962). Este último afirma que «O relógio cultural […] se baseia principalmente em fragmentos arruinados de materiais provenientes de depósitos de lixo e de cemitérios de cidades abandonadas ou vilarejos enterrados». Impossível não pensar nos fragmentos e ruínas que permeiam boa parte da sua obra. Há outra questão importante, mas para isto preciso de um parêntese.

Em 2018, o Museu de História da Arte de Viena [Kunst Historisches Museum] inaugurou a exposição The Shape of Time (6 de março – 8 de julho), cujo projeto partiu do livro de George Kubler. Naquela exposição, que tive o prazer de visitar presencialmente, o curador Jasper Sharp “conversou com o passado” confrontando obras clássicas com outras de absoluta contemporaneidade. Assim, foi possível contemplar, lado a lado, a Suzana e os velhos (c. 1555/6) de Tintoretto com a pintura Sem título (2018) de Kerry James Marshall; o Autorretrato (1554) de Sofonisba Anguissola com o Autorretrato (1928-30) de Claude Cahun; o Jovem casal (1505-10) de Tullio Lombardo com o Perfect lovers (1987-90) de Felix González-Torres; ou o magnífico e poético confronto de um Autorretrato (1652) de Rembrandt com uma das pinturas cromáticas de Mark Rothko. Lembro-me que aquela exposição foi uma das experiências estéticas mais fulminantes e arrebatadoras que vivi.

Depois deste parêntese, e voltando aos fragmentos e ruínas que permeiam a sua obra, ao embaralhamento do tempo em diálogo a esse confronto de imagens, não pude deixar de pensar em algumas das suas Fachadas ou Desenhos em demolição (2013-2018) confrontados com algumas das catedrais góticas em ruínas do pintor alemão Friedrich (1774-1840). Como já lhe disse na carta anterior, é impossível conceber nossa exposição da mesma maneira depois das ruínas que a pandemia está a deixar ao seu passo. Os seus desenhos, embaralhados no tempo e diferentes do passado e do futuro, podem, em palavras de Keith Moxey, «criar distinções na textura do tempo».

Acredito que eu tenha divagado demais, caro amigo. Somente lhe dizer, por último, que revisar os seus desenhos tem-me feito bem.

Um abraço,

Paulo