Corresp #01

Paulo Duarte.

 

 

Chuvas de verão

Goiânia, 10 de Maio

Caro Glayson,

Ainda me lembro do caminho percorrido durante aquela segunda-feira, dia 27 de janeiro. Enquanto dirigia, uma chuva de verão me pegou de surpresa. O limpador de para-brisas não conseguia remover a imensa quantidade de água que caia daquele céu enegrecido, e, para completar, fiquei sem sinal no celular. Com medo de ficar ali parado, decidi continuar aos poucos, a uma velocidade não muito maior que 20km/h. As ruas eram estreitas, o que dificultava a visibilidade. Com um pouco de dificuldade encontrei o portão, você apareceu e confesso, naquele momento, ter ficado mais tranquilo. Naquela tarde, você e Karita me receberam muito gentilmente. Acompanhados da chuva intensa que aos poucos foi cessando, boa conversa, pão de queijo e café «Querência» de Minas, você me mostrou, muito gentilmente, boa parte da sua produção. Foi uma tarde agradabilíssima. Contou-me que estava a organizar uma exposição e ali iniciamos algumas conversas que dias depois confirmaram essa aventura curatorial. 

Não parecia difícil, aliás parecia até fácil: trabalhar conjuntamente, selecionar e ordenar algumas obras com tal de construir uma narrativa, elaborar um texto, pensar num catálogo, enfim. Lembro-me do nosso primeiro encontro no CCUFG no dia 9 de março, enquanto a pandemia parecia um fantasma distante; então movíamos mesas, desenrolávamos desenhos, colocávamo-los no chão, tudo com tal de visualizar o melhor possível as obras no espaço físico do Centro Cultural. Daquele encontro surgiram muitas ideias; nova produção artística, obra coletiva, convites pessoais, enfim, tudo parecia caminhar. Contudo, não previmos que apenas sete dias depois tudo mudaria.

A pandemia nos pegou desprevenidos, como a todos. E com ela, muitas certezas individuais e coletivas desabaram. Paralisia, apatia, isolamento e medo. A fragilidade humana se manifestou em toda a sua crueza. Muitas reflexões vieram à tona e, de repente, as «Ruinas e Demolições», título provável da exposição, se fizeram mais presentes que nunca. Já não era possível pensar as ruinas da mesma maneira. 

Quando os imprevistos apareceram, eu estava lendo o livro «Depois do futuro», do filósofo italiano Franco Berardi, que muito me tem feito pensar. O autor compara o Zeitgeist depressivo deste novo século ao espírito futurista que marcou tão profundamente a cultura do século XX. Não é difícil pensar rapidamente na crise global de 2008, no declínio das democracias liberais ou na era pós-humana que tão bem descreve a filósofa ítalo-australiana Rosi Braidotti. A pandemia chega, então, para completar o que parece ser um ciclo nefasto; de repente, o futuro, aquela fonte de esperança que permeia boa parte do século XX, parece estar cada vez mais distante. Diante deste momento precário, delineado pelo capitalismo global, de autoritarismos político e tecnológico que molda nossas vidas, de pandemia descontrolada, de pouca fé no futuro como fonte de esperança, diante da violência física e simbólica e das ruínas de um mundo que hoje sabemos não controlamos, o que fazer? Talvez, o que melhor sabemos como estirpe humana: continuar, apesar de tudo. Em meio a esta distopia, talvez seja importante voltar a apontar a arte como lugar de liberdade e sonhos, como lugar do (im)possível, onde ressignificamos a vida.

Neste período de isolamento e muitas incertezas, lembrei-me do escritor Eduardo Galeano, ao qual lhe é atribuído um texto de Fernando Birri em que trata de explicar para que serve a utopia:

A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

Talvez hoje, mais do que nunca, devemos voltar àquela tarde de 27 de janeiro, aonde em meio a uma chuva estrondosa, encontramos espaço para o café, a conversa, a esperança nos projetos, no futuro, na arte.

Caminhemos.

Um abraço,
Paulo